quarta-feira, maio 30, 2007

Sicilia Patria Mia!


Seguindo o exemplo da minha camarada de caneta, Selene, decidi descrever a ilha onde nasci.

Para quem não sabe, nasci na Sicília, uma região autónoma de Itália.
Desde pequenino que percebi que, independentemente do que crescesse ou do que fosse, iria ser sempre o “ menino”, o filho do senhorzinho e neto do senhor…” Menino o senhorzinho e o senhor já estão à espera para jantar” ( quem apanhar a conversa a meio não percebe a quem é que se estão a referir.
As tradições são tão poderosas na minha ilha que estender a mão a um familiar mais velho é quase tão ofensivo como esbofeteá-lo…pelo menos na minha zona, Siracusa…Os dois beijos na face continuam a prevalecer, ou então o beijo da mão ( não, não é só nos filmes), depende tudo da influência da pessoa, a sua idade e sexo.
Por exemplo a um senhor de mais idade deve-se inclinar ligeiramente a cabeça em sinal de respeito. A uma senhora devemos beijar a mão, assim como a um familiar mais velho e mais influente. Aos muitos primos, irmãos ou indivíduos mais próximos, os dois beijos na face são o indicado…mas vai depender muito de cada um e, como é lógico, as tradições têm-se esmorecido, e as gerações mais novas já não são tão cordiais.
Na zona em que nasci todos se conhecem uns aos outros, nem todos se dão bem…as rivalidades entre famílias são tão intensas que nos são incutidas logo à nascença, derivam já de guerras passadas, lares passados e não é muito complicado imaginar essas disputas a terminarem em banho de sangue ou lágrimas. Essa é uma das coisas que menos gosto na minha terra natal, as distinções que se fazem…questioná-las quase que conduz à expulsão da família.
Os jovens ficam a viver com os pais quase sempre até ao dia do casamento, por essa mesma razão as regras para utilizações secundárias dos carros são diferentes das dos nossos países. Não é raro encontrar um homem de trinta anos a viver em casa dos pais…se não casou dificilmente sai de casa. Existem apenas duas excepções…os universitários e os das forças armadas ( e mesmo assim dentro da excepção existem excepções).
A minha ilha tem influências de vários povos, por isso temos um dialecto só nosso. Os conterrâneos do continente continuam a ter alguma dificuldade em nos perceberem ( o contrário não se aplica).
Crescemos em contacto com a água…Não existe um único Siciliano que não saiba nadar, mesmo os mais citadinos…pelo menos eu nunca ouvi falar de tal espécime.
Aprendemos desde novos a respeitar o Etna e, ao mesmo tempo, a admirá-lo pela sua beleza e “ simpatia”…pois a sua lava nunca atinge populações e fertiliza os campos em redor.
A coisa melhor na minha terra é a abundância de histórias…muitas exageradas, como a da Máfia…mas mesmo assim interessantes o suficiente para as querer ouvir várias vezes, ouvindo o som do mar ou desfrutando do calor da lareira.


...amuri e fantasìa,
Sicilia, Sicilia, Tu si' la Patria mia...!

terça-feira, maio 29, 2007

A minha cidade...

Era uma cidade pequenina mas especial. Penso até que o nascimento desta terra não esteve nunca devidamente previsto porque foi construída num local onde quase nada poderia existir...Não há árvores, nem pássaros, nem jardins, nem parques, nem fontes... apenas casas aleatoriamente empoleiradas no mar!!
Nesta ilha onde me encontro tudo tem a mesma cor: amarelo, amarelado, torrado, da cor do pó que o vento Suão traz aos braços. O mar que banha esta ilha é turbulento, inquieto e impaciente. Nunca o vi calmo. Os barcos estão sempre em movimento e provavelmente os seus cascos já foram reforçados mais vezes do que aquelas que os pescadores desejariam...
Quase todas as tardes vou até ao paredão do porto da minha ilha. O mar é a minha companhia predilecta e sinto que me chama ao fim de cada dia de trabalho. Faço-lhe companhia livremente. Sento-me, dobro as pernas e encosto-me às rochas...à minha frente, um mar de infinitas fantasias e desejos!!
Numa dessas tardes observo dois grandes peixes a dirigirem-se para o paredão onde me encontrava. Automaticamente pensei em golfinhos e levantei-me nem segundo de tempo. Vi-os a chegar. Roçaram-se nas rochas velhas e gastas e partiram. Mais uma vez e o mesmo ritual... Mais tarde disseram-me, com a maior naturalidade do mundo, que os tubarões coçavam-se no paredão da minha ilha... de longe a longe apareciam!! No fundo, descobri que tanto eles como eu eramos fiéis dependentes daquele bloco de pedras: eles coçavam-se, eu encostava-me!!
Para além do horizonte marítimo também me distraiam os barcos que atracavam no porto da minha ilha. Pousava os olhos em qualquer pessoa que entrava ou saía deles e tentava adivinhar-lhes a razão da visita: trabalho, férias, visita familiar, trabalho, perdido... Dei por mim a querer escapar-me por entre alguns deles. Gostaria de ser aquela senhora de branco, ou aquela criança que vai de mão dada com o pai, ou aquela menina que vai sorridente... sentia que a cada barco que partia, uma parte de mim estava numa mala qualquer!!
Mas todos os barcos partiam e eu nunca saí do meu lugar. A solidão era atroz e o silêncio de tal forma avassalador que, em alguns momentos, gritei e cantei com a intenção precisa de saber se ainda tinha voz... Quando o sol começava a desaparecer, despedia-me dele e regressava a casa. Nunca saí do paredão da minha ilha sem antes ter a absoluta certeza de que o sol daria mesmo o seu lugar à lua. Era a vez dela. Merecia-o.
Pelo caminho encontrava sempre as mesmas pessoas, no exacto lugar onde estavam no dia anterior, a fazer mecanicamente o que faziam desde que se conheciam. Delas destacou-se sempre o Sr. Baldé. Pescador. Nunca lhe soube a idade porque nem ele próprio sabia. Uma vez contou-me o seu maior desejo:
“Bô tá bê aquele barco ali abandonado? Quando 'tiver pa morrê mi querer qui bô botâ ali. Querê morrê sem vê à terra, só água em todo o lado! Dixâ-m’ quétu!”.

Baldé tinha na cara, nas mãos e nos braços o peso e a crueldade do mar, do sal e do sol. Desconfio até que era feliz. Era o seu mundo, sabia-o de cor e conhecia-o como ninguém... quantos de nós temos um mundo com tudo e não nos sentimos presença nele??!!
A estrada era poeirenta. Era engraçado ver as casas apenas pintadas na fachada. Para a fotografia. Atrás e de lado eram amarelas e cinzentas. A tinta era fornecida pela Câmara e como tal tinha de chegar para todos... os menos influentes pintavam uma porta ou uma janela... cidade estranha a minha!!!
Na beira da minha casa estava sempre o Aitô. Pequenino, sujo e rasgado. Esboçava um sorriso e timidamente me perguntava se íamos à água. “Sim, Aitô, vamos! Vou buscar os garrafões.” Pelo caminho nem uma palavra. Houve alturas em que pensei que ele me via como um ser de outro planeta, de hábitos estranhos. O pior deles era fumar. Ficava atónito quando me observava a fumar da janela. Com vergonha, muitas vezes, escondia-me dele... tinha um olhar que me fragilizava. Perguntou-me uma vez, num daqueles dias estanhos em que lhe apetecia conversar:
- Bô tê crianças?
- Não, ainda não.
- Bô tê quanto ano?
- 25, porquê? Estou velhota é isso?
- Sim.
As meninas eram mães cedo. Tão cedo que eram crianças a criar crianças. Deixavam de brincar e de ir à escola para cuidarem de um filho que, muitas delas, não queriam. Os homens excluíam-se dessas tarefas. Faziam e existiam como se não fosse problema deles.
No Natal chamei o Aitô e ofereci-lhe um helicóptero. Eu própria o embrulhei cuidadosamente. E fiz questão de colocar um laço. Pegou no embrulho, olhou-me nos olhos para se certificar que era verdade, era mesmo para ele, sentou-se no chão e, lentamente, começou a abrir o presente. Fiquei em cócoras a estudar as reacções.Quando o papel deixou de tapar o helicóptero, pegou nele e analisou meticulosamente cada pormenor. Esqueceu-se de mim. Fotografou clinicamente cada peça. Levantou-se num ápice. Beijou-me timidamente e correu com o braço levantado a segurar o helicóptero, deixando atrás de si um rasto de poeira misturada com felicidade... Os meus vizinhos não devem ter gostado desta oferta porque, desde aí, sem hora certa para voar, ouvia-se na rua “BRUUUBRRRRR BBRRUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUBRUUUMMMMMMMMMMMMM” e o Aitô descalço desaparecia por entre as casas...
Finalmente, à noite, quando o meu corpo não aguentava o cansaço, abria as janelas do quarto e deitava-me... Adormeci algumas vezes a chorar. Mas adormeci sempre embalada pelo som das ondas, do vento e do mar. E hoje, à luz da distância, tenho saudades... da tranquilidade, do tempo para tudo, do estar só comigo mesma...
Um dia volto à minha ilha. Talvez hoje a minha cidade esteja mais crescida e madura. Espero que não. O seu encanto residia naquela ingenuidade de ver o mundo passar ao lado e nem ligar. Provavelmente o Sr. Baldé já só vê a água e talvez o Aitô não se lembre de mim... mas ainda gostaria de lhes provar que já não sou o “sorriso triste”... como muitas vezes me chamaram...


Ôi Cábu Vêrdi,Bô qu’ ê nhâ dôr más sublími
Ôi Cábu Vêrdi,Bô qu’ ê nhâ angústia,
nhâ paxõNhâ vída nâceDí disafíu dí bú clíma ingrátu
Vontádi férru ê bô nâ nhâ pêtu
Gôstu pâ lúta ê bô nâ nhâs bráçuBô qu’ ê nhâ guérra,
Nhâ dôci amôr
Stênde bús bráçu,
Bú tomâ-m’ nhâ sángui,
Bú rêga bú tchõ,Bú flúri!
Pâ térra lôngi
Bêm cába pâ nôs
Bô cú már, cêu í bús fídju
N’ úm dôci abráçu dí páz