quinta-feira, janeiro 04, 2007

“Os meus olhos viram o que jamais olhos humanos deveriam poder ver…”

Vi sangue, mortes e cinismos. Vi o emergir e o submergir, quase simultâneo, de uma sociedade degradada. Vi acções sem sentido, cumpri ordens sem olhar para o lado…vi erras e errei e errei, continua e exaustivamente.
Vi sorrisos sobre escombros de orfanatos e escolas, hospitais de campanha a abarrotar, capacetes debaixo do braço, boina na cabeça dos “ pequenos” e o olhar a pairar sobre o que não vemos.
Observei castelos a ser construídos e ouvi o som da onda a aproximar-se. Vi isso e muito mais…vimos e ouvimos calados.
De um lado os gritos do outro as mórbidas gargalhadas, Alás e Cristos armados, com o olhar a inundar de raiva e sede de vingança.
Vi os filhos dos seguidores nas ruas, sem um Deus que os protege-se, sem nada de bom a esperar…Variadas vezes ouvi os passos dos mestres religiosos a espezinhar famílias e a trespassar corpos à muito sem fé…Fugindo e mandando lutar… saltando as barreiras que tinham criado sem olhar para trás, deixando o rasto religioso do sangue a…inundar os castelos….

NÃO PASSARÃO - MIGUEL TORGA

Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

Miguel Torga in Poemas Ibéricos, 1965

terça-feira, janeiro 02, 2007

Num café...

Numa conversa de mulheres, daquelas que os homens nunca entenderão (pela simples razão de serem homens), surgiu o tema da desconfiança, insegurança, mentira e traição. (O tema compras e saldos foi o seguinte, mas sobre esse não me pronunciarei).
Uma de nós é uma mulher que, vivendo a esperança de uma relação que adia o inevitável, desconfia da própria sombra e sustém a respiração sempre que se fala em traição e mentira. Tenta esconder o fracasso pessoal e, sempre que pode, balbucia qualquer coisa do género “ A mim não me assusta a solidão. Se for necessário dou um passo em frente e nem olho para trás...”
Ambas sabemos que se engana a si própria. Não o dizemos porque somos amigas mas somos mulheres!!
Outra há que vive sozinha, num prédio com demasiados andares... acorda sozinha, vai trabalhar, almoça no local de trabalho, com colegas entediantes e sem “sal” (segundo ela), faz ginástica num local intitulado “in”, regressa a casa, só, come qualquer coisa rápida e senta-se no sofá a ver a(s) novela(s). Não se cansa dizer “Assim é que estou bem! Ninguém me chateia. Sou independente” mas todas sabemos que reserva em si o medo de se relacionar, a insegurança da entrega e da partilha. Ainda não esqueceu o passado. Aliás é lá que vive!! Mais uma vez, ficámos caladas cientes da nossa condição feminina.
E há a L. Chamemos-lhe assim. A L. vive uma vida de sonho. Um trabalho que a preenche, um marido que a idolatra e a presenteia com palavras e actos inesperados, festas sociais nas quais se destaca pela beleza e carisma naturais. Da boca da L. nunca se ouviu uma lamentação, uma queixa, um sentimento menos positivo porque, segundo ela, “ a nossa vida é como uma caverna com eco. Se lá dentro gritarmos exclusivamente coisas boas é isso exactamente o que o eco / vida nos vai devolver.” Admiramos-lhe a força, a confiança e a “sorte”. Mas somos mulheres, caramba. Caladas até ao fim...
Como diria Álvaro de Campos “três tipos de idealistas e eu nenhum deles...”
E enquanto falam, olho para dentro e penso que somos seres relacionais mas, por maior que seja o paradoxo, é-nos muito difícil relacionarmo-nos com os outros. Nem sempre, claro, mas talvez mais vezes do que as que gostaríamos. Seja porque a vida afasta as pessoas, porque há demasiado sofrimento à nossa volta ou porque temos medo de amar e ser magoados, ficamos, muitas vezes, isolados no nosso canto.
Mas... Quanto menos damos, menos recebemos.
Partilhar emoções, confiar nos outros e amar sem medos é a única maneira de crescer e criar laços fortes e seguros... Nada é definitivo na evolução das pessoas, tudo muda, e ,a boa qualidade das relações afectivas que se vão estabelecendo ao longo das nossas vidas, tem a capacidade de mudar profundamente possíveis dificuldades.
A ideia de que são as relações com as pessoas com quem vamos lidando nas mais variadas situações que nos moldam, dá-nos a noção da nossa verdadeira dimensão. Têm o poder de nos revelar. É por estes laços que se correm perigos, vivem alegrias e se conhecem as tristezas que permitem edificar quem realmente somos... levam-nos a uma procura, constante, da perfeição!!
Diariamente temos o desejo de pertencer ou possuir alguém ou alguma coisa... apesar do individualismo, cada vez mais evidente, todos nós procuramos algo ou alguém em quem nos possamos apoiar... no entanto, temos vindo a perder o tempo e a disponibilidade para estar atentos aos que nos rodeiam. Os dias de hoje não promovem a proximidade e paira no ar a ideia de perigo de contágio de sentimentos piegas indesejáveis e sobretudo passados de moda, que nos expõem e enfraquecem... sentimentos que mostram exactamente aquilo que somos...
No fundo, tudo se resume ao facto de alguns de nós se sentirem ansiosos numa vida cujo objectivo principal é encontrar uma “relação ideal”. Nela se investem todos os sonhos e se criam expectativas exageradas, esperando invariavelmente receber o máximo de amor, amizade ou afecto... aquilo a que temos naturalmente direito!
A ideia de perdermos relações significativas torna-nos pessoas deprimidas e até em luto quando as nossas ligações sofrem danos... por outro lado, sentimo-nos profundamente sós quando não as temos.
É absolutamente necessário encontrar um equilíbrio entre intimidade necessária e a expressão de independência e autonomia pessoais, sem cair na desconfiança contínua do exterior, que transforma os elos em pedaços poucos transparentes, defensivos e muito tristes...

“Que conversa deprimente a vossa!! Vamos às compras para desanuviar!!”

Interrompida nos meus pensamentos, paguei o café e preparei-me para a batalha!
Mulheres!!